Paquito
No ano de 1975, tinha eu 10 anos de idade, e a minha irmã gêmea adorava uma canção chamada Esse tal de roque enrow, cantada por uma tal de Rita Lee. Eu gostava de Raul Seixas e de Há dez mil anos atrás, e achava que a tal da Rita Lee fazia música de mulher, e fazia mesmo: ela era praticamente a única compositora popular do Brasil. Antes dela, houve Chiquinha Gonzaga, Dolores Duran e Maysa, sendo que Dolores só seria valorizada como compositora após a morte, aos 29 anos, e Maysa, depois de um tempo, passaria a gravar só músicas dos outros. E Rita, além de mulher, fazia roque enrow, como Raul, e eles eram os maiores ídolos populares desse gênero de música no Brasil, já que o Rei Roberto havia se tornado um cantor eminentemente romântico, tendo passado a bola pra Erasmo, que era ótimo, mas não tão popular assim. (E, claro, havia também Secos & molhados, que só durou dois anos, e Os novos baianos, inclassificáveis e únicos entre o rock e o samba.)
E Rita e Raul tinham um parceiro em comum, o hoje renomado escritor Paulo Coelho, que era um excelente compositor pop. Raul morreu em 1989, e, como a morte diviniza, cristalizou-se a sua condição de mito. Rita vive, e viver é maravilhoso, perigoso e dá trabalho. Os dias do resto da sua vida, contados por ela mesma, estão em Biograffiti, caixa com três DVDs dirigidos por Roberto de Oliveira, aquele mesmo dos especiais de Chico Buarque e da caixa Maestro soberano, sobre Tom Jobim. O lançamento é da Biscoito Fino em parceria com a Bandmusic e a RWR.
O DVD Ovelha negra trata do percurso artístico, infância, e da adolescência já nos Mutantes, fundamentais pro Tropicalismo e pra música pop do Brasil e, hoje, do mundo, já que o grupo, trinta anos depois, virou referência e retornou aos palcos e às gravações sem Rita e, o que é impressionante, executando o repertório também de trinta anos atrás, quando tinha Rita como integrante. Bem, como ela mesma conta, foi expulsa do grupo, no início dos 70, por não ser uma excelente instrumentista, algo necessário na posterior fase "progressiva" da banda, cujo repertório não está incluído, não custa repetir, no atual revival dos Mutantes.
Ironias do destino à parte, Rita deu a volta por cima, e, nos anos 70, criou o Tutti frutti, bem mais popular que os Mutantes, mas também mais convencional. Esse tal de roque enrow, que já citei, Ovelha negra e Agora só falta você são dessa fase. Mas o sucesso maior viria mesmo na década de 80, quando Rita encontra seu parceiro amoroso e musical Roberto de Carvalho, e faz o que chama de "rockcarnaval", canções, no dizer de Tom Zé, sexo-pedagógicas, com clima de marchinha carnavalesca, o que irrita os roqueiros mais saudosos da fase do Tutti frutti.
Com Roberto, a partir de Mania de você, Rita torna-se mais brasileira, e a mais popular popstar do Brasil dos anos 80. O auge dessa fase se dá com o lançamento de Rita Lee e Roberto de Carvalho, de 1982, disco que conta na faixa Brasil com s, com a participação de João Gilberto, com quem Rita cantou, no Especial da Globo dedicado a João, Joujoux e Balangandãs, de Lamartine Babo, um precursor de Rita no uso do senso de humor na canção popular brasileira, e um ás das marchinhas. O duo com João é a pérola do DVD Baila comigo, que trata da vida de Rita na estrada.
Aliás, João Gilberto só se daria ao luxo de participar de um disco de outro artista quando gravou com Maria Bethânia e com Miúcha. João, enfim, viu o óbvio que só os profetas enxergam: o canto de Rita é herdeiro do seu canto, como se pode ver explicitamente nas gravações com João, e em Baby, com os Mutantes, e implicitamente em toda a carreira de Rita Lee. A fase com Roberto, no entanto, iria dar sinais de cansaço a partir do LP seguinte, Bom bom, de 1983, gravado em tempo recorde: o que era novo em Baila comigo e Lança perfume, se tornaria clichê em On the rocks e Desculpe o auê.
O DVD Cor de rosa choque fala de Rita e do universo feminino retratado em suas canções, e o momento especial dessa caixa é o depoimento sobre Cássia Eller, com quem Rita canta Luz del fuego. Os três discos contêm depoimentos corajosos e emocionados de Rita Lee, que parece fazer graça pra não se emocionar demais. Não precisa, a gente se emociona por ela.
Os discos também têm shows gravados a partir do ano 2000, e esta é a falha deste lançamento: como a maior parte da carreira solo de Rita foi lançada pela Som Livre, gravadora da Rede Globo, onde ela era presença constante em especiais e trilhas de novelas, e não na Bandeirantes, à qual pertence a Bandmusic, faltam imagens de arquivo da fase áurea da carreira de Rita Lee. Os depoimentos de Tom Zé, uma performance à parte, Caetano, sempre articulado, da irmã Virgínia, de Roberto de Carvalho e de Beto Lee, filho de Rita, contrabalançam essa ausência, mas não a resolvem. Fica um gostinho, já que se trata de uma biografia, de "quero mais".
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